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As loucuras que o futebol faz a gente cometer

UOL

04 Julho 2021

Há exatos nove anos eu estava fora do Brasil, viajando de férias com minha irmã e minhas duas sobrinhas, uma viagem que tinha sido marcada há bastante tempo e que, infelizmente, cairia justamente no dia em que o Corinthians iria disputar a histórica final de uma Libertadores. Estávamos na costa oeste dos Estados Unidos e a pequena cidade em que tínhamos alugado uma casa estava toda mobilizada para celebrar o 4 de Julho. Não havia ali nenhum interesse pelo jogo do Timão e eu tampouco sabia onde poderia assistir à partida. Tive então uma ideia inusitada. Duas, aliás. A primeira delas era a de me vestir com a camisa do Corinthians e ir passear pela rua central. Minha esperança era a de que eu pudesse encontrar um conterrâneo que, com sorte, seria corintiano ou corintiana que me diria onde eu poderia ver o jogo. A segunda, um pouco mais ousada, foi a de fazer uma promessa para o caso de vitória.

Minhas sobrinhas, que na época tinham sete e quatro anos, já tinham percebido minha agitação e meu nervosismo, o que não era difícil de se notar dado que esse era o único assunto sobre o qual eu conseguia falar. Como não se mostravam muito interessadas, eu optei por ensinar a elas todas as músicas que cantávamos na arquibancada, com coreografia; era dançando "minha vida, minha história, meu amor", "um bando de loucos" e "poropopós" que passávamos o dia.

Quando elas cansavam, o que demorava bastante, eu pegava papel e caneta e fazia concursos do melhor desenho do escudo do Corinthians. Na véspera do jogo, notando minha obsessão, elas me perguntaram, marotamente, o que eu seria capaz de fazer caso o Corinthians ganhasse. E eu respondi sem pensar: correr pelada no jardim. E aqui vale acrescentar um detalhe importante para a história: o jardim dava para a rua e não havia muro, grade ou cerca; não havia a rigor nada separando o jardim da rua. O que eu tinha acabado de dizer, portanto, era que se o time ganhasse eu correria pelada na rua. Bruna, a mais velha, perguntou: "Promete?". E eu respondi "prometo".

Para encurtar a trama, subindo e descendo a rua central usando minha camisa número 10, eu de fato encontrei dois brasileiros que me disseram onde iriam ver o jogo. Era num bar que ficava ali pertinho. Voltei para casa e avisei a minha irmã e às meninas que eu tinha encontrado um lugar. Elas se animaram e disseram que iam comigo, mas na porta do bar as crianças foram barradas. Eu corri para levar todas para casa e voltar com o carro, o que me faria beber apenas uma cerveja durante as quase três horas que fiquei ali.

Como todos e todas sabem, o Timão ganhou e, como ninguém sabe, eu abracei o bar inteiro, incluindo os gringos que não sabiam porque eu estava tão estrondosamente feliz, mas pareciam comovidos com meu pranto e um pouco assustados com meus berros (por sorte eles não entendiam os palavrões que saíam de mim). Rompi para casa para contar a novidade, mas já estavam todas dormindo. E foi então que eu me lembrei da promessa.

Não dormi a noite inteira, de nervoso mas também porque fiquei revendo lances do jogo no computador. Eram seis e meia quando decidi que seria essa uma boa hora para correr pelada na rua. Fui até o quarto onde dormiam minha irmã e minhas sobrinhas. Estavam todas numa mesma cama, minha irmã no meio. Foi ela que abriu primeiro os olhos: "Ganhou?", quis saber. Eu balancei a cabeça e ela disse: "Você vai pagar mesmo a promessa?", eu balancei de novo a cabeça. Ela então notou que eu estava de roupão e disse: "Você tá pelada?", e eu balancei a cabeça uma terceira vez.

Bruna abriu os olhos sentando na cama animada: "Ganhou? Ebaaaaaa. Vamos para o jardim!". Mel, a caçula, mais ressabiada, disse que só iria para o jardim depois de tomar o leite. Nessa hora me irritei: "Gente, não tem Nescau, não tem leitinho, não tem nada disso. Tô congelando de frio e é agora ou nunca". Sabendo que não poderiam me levar ao limite, de pijama foram todas para o jardim. "Quantas voltas?", quis saber minha irmã cuja voz indicava claramente que ela estava com pena de mim. "Duas!", gritou Bruna. "Três! Três!", gritou Mel se vingando do atraso do leitinho.

Respirei fundo, soltei o roupão e lá fui eu, berrando com os braços pra cima. Quando completei a primeira volta pude ver a expressão das três, que era de incredulidade. Minha irmã estava filmando e as crianças, em vez de rirem, estavam de boca aberta e olhos arregalados. Completei as três voltas berrando como berrei quando o juiz apitou o fim da partida na noite anterior, entramos e fomos tomar café da manhã em silêncio.

E então, de repente, as três caíram num surto de riso que se agigantava todas as vezes que elas viam o vídeo feito por minha irmã. Passamos aquelas férias rindo do vídeo e dançando poropopós na sala e no jardim. Minhas sobrinhas nunca mais se esqueceram do episódio, nem da minha alegria colossal por causa de um jogo, de um time, de um campeonato.

O que elas não sabiam até então é quais os afetos que um time mobiliza na gente, e por que. No meu caso, o Corinthians não é apenas uma equipe ou um estado de espírito, é também a real e palpável presença de alguém que me deixou cedo demais numa tarde de sexta feira de 2011, às vésperas de fazer 40 anos, do título brasileiro e para quem o Corinthians era a maior das paixões. Tínhamos comprado nossos ingressos para o jogo contra o Palmeiras, que acabaria sendo a final, e eu até hoje não sei como consegui ir àquele jogo sozinha. É por ela eu torço, distorço, berro e xingo. É por ela que tantos afetos esse time mobiliza em mim. Me aquieto um pouco quando penso que minha ex-mulher talvez tenha visto de uma outra dimensão a vitória que nesse 4 de julho completa nove anos, e que era a coisa com a qual ela mais sonhava na vida. E quem pode dizer que ela não viu?

Sim, é muito mais do que futebol. Sempre foi muito mais do que futebol. E naquele 4 de julho de 2012 eu estava vestida com a camisa do Corinthians que levava nas costas o nome dela, a pessoa que conheci que mais entendeu de futebol, e que também batia um bolão. Um dia a gente volta a se abraçar, minha Rob. Até lá, sempre que o Corinthians entrar em campo eu sei que você estará ao meu lado.

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