Para falar de Abel Ferreira talvez precisemos fazer um exercício de projeção.
É o que exigem de nós as personagens históricas porque seus tamanhos, se avaliados no presente, vão sempre deixar a desejar para um ou outro grupo de pessoas e, assim, convidar a reações apaixonadas para um lado ou para o outro.
Nessa imagem futura, Abel Ferreira é o maior treinador da história do Palmeiras.
Maior em títulos de importância extrema e, ainda mais relevante, em identificação.
Nesse segundo quesito, o da identificação, ele talvez seja o maior treinador do mundo.
Quem antes dele conseguiu formar capital simbólico de atributos e predicados que se equivalem ao do torcedor de forma tão profunda e meteórica?
Quem chegou e, em meses, iniciou uma rotina de seguidas conquistas impressionantes elevando com elas o clube a um lugar de magnificência?
Quem criou um time invencível a partir de elenco considerado mediano revelando os craques por trás daqueles considerados comuns?
É coisa demais para acomodar em um só mortal de contornos que habitam o tempo presente.
Sem ferramentas para compreender as múltiplas camadas desse inédito presente, bora para o futuro.
Nesse futuro, as destemperadas reações de Abel à beira do campo serão consideradas absolutamente geniais.
É um torcedor em campo.
É a paixão em verde e branco que peita árbitros e rivais.
É puro folclore.
É a cultura palmeirense pulsando viva por décadas e décadas na pele de uma lenda que reverbera através do tempo.
Nunca haverá outro como ele em clube algum.
Vejam ali no clube sua estátua de oito metros de altura: o tamanho é real.
Abel será um senhor de cabelos brancos, um pouco mais gordo talvez, aposentado e morando em Caiscais, quem sabe, e, entrevistado por um ou uma jovem repórter, vai se lembrar, sorrindo com o entrevistador, do dia em que foi pra cima de Calleri, ou de Edina, do momento em que entrou em campo gesticulando furiosamente para protestar o pênalti não marcado, da bica no microfone da TV.
Essas imagens estarão lado a lado com as imagens das taças sendo levantadas, das preleções apaixonadas, das alegrias com os jogadores depois das conquistas, das entrevistas pós jogo.
Estamos vendo a construção de um mito e por isso, se reagirmos criticamente como se estivéssemos tratando de um simples mortal, o torcedor e a torcedora do Palmeiras se revoltarão.
Quem analisa Abel com lentes humanas nunca verá a lenda.
Chegamos, assim, a um impasse.
As reações de Abel à beira do campo podem perfeitamente entrar na chave da agressividade. Mas quem assim avalia, entendem os palmeirenses, não foi capaz de enxergar a imensidão do mito.
Estariam errados os palmeirenses?
Difícil cravar certo e errado em ocasião de tantos afetos colocados em circulação.
O que acho é que seguiremos deslizando nas avaliações se insistirmos em falar do Abel do presente. Esse já não existe mais.
Abel, assim como os grandes heróis, já se desdobrou no tempo e projetou sua imagem no futuro.
É lá que ele vive hoje. O do presente é um holograma, um rascunho ainda imperfeito do que ele está prestes a se tornar no imaginário do futebol.
Talvez, para melhor entendê-lo, devamos sempre pensar no Abel do futuro, um lugar que terá engolido e triturado qualquer crítica já feita ao mito enquanto ele era jovem.