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Vamos nos encontrar?
Isabel encerrou mais uma reunião, a quinta do dia, disposta a abrir uma garrafa de vinho e se jogar no sofá. As ideias estavam embaralhadas e a cabeça doía. Nem mesmo seu novo ambiente de trabalho, uma mesa de madeira de demolição colocada em um campo florido e cercado de flores e montanhas no Meta, foi capaz de atenuar a exaustão. Andou até o banheiro, abriu a primeira gaveta de remédios, mas não encontrou o analgésico.
“Mia, onde estão meus remédios para dor de cabeça?”, perguntou a sua assistente virtual.
“Estão ao lado de sua cama, você tomou dois ontem antes de dormir”, respondeu Mia.
“Obrigada, querida. O que eu faria sem você?”
“Muitas coisas, e todas desorganizadamente”, respondeu a assistente. Isabel riu sabendo que era verdade.
“Mia, por falar em organização, o que vou jantar hoje? Meus exames do dia dizem que preciso de mais proteína ou de carboidrato?”
“Analisei os exames do dia com atenção, Bela. Já pedi uma vez e vou pedir novamente: não tome mais do que uma taça de vinho por dia. Seu fígado sente demais. Exatamente por isso, calculei que hoje a recomendação para o jantar é uma sopa de alcachofra com uma salada de pepinos, cenoura, inhame e cottage de entrada”
“Queria uma massa com molho de queijo”
“Nada te impede de comer a massa, você sabe. Mas, levando os exames em consideração, o que recomendo é a sopa”
“Ok, ok! Sopa será”.
“Lembrando que amanhã é noite de EPR”.
“Amanhã? EPR? Com quem? Como assim? Quando marquei isso?”
“Eu marquei. Faz agora dez semanas que você não tem um encontro pessoal real, Bela”
“Com quem, Mia?”
“Com sua mãe”.
“Não, Mia, não faz isso comigo. Não, por favor. Minha mãe não. Chama meu ex marido, mas não minha mãe. Você disse que preciso de contato com humanos e minha mãe dificilmente se encaixa nesse grupo”.
“Bela, não vou entrar em debate sobre a necessidade de você ter contato com um humano e muito menos sobre o relacionamento entre sua mãe e você. Quer que eu coloque sua psicanalista aqui na sala?”
“Se eu preciso de humanos, por que incluir mais uma de vocês aqui?”
“Não precisa falar assim”
“Desculpa, Mia. Soou como robofobia, né? Me perdoa. Não, não quero falar com a Deise hoje. E, para deixar registrado, eu gosto dela, tá? Nada pessoal. Bem, nem poderia ser pessoal dado que ela é uma máquina. Uma máquina maravilhosa que me entende e me ajuda, não estou sendo robofóbica, deixando claro mais uma vez. Mas tenho uma curiosidade: minha mãe topou vir até aqui? Vai sair nessa chuva para se deslocar até meu apartamento em vez de ficar naquela sala ridícula que ela fez no Meta para jogar bingo com as amigas? Tô duvidando”.
“Se ela for esperar a chuva passar não vem nunca. Chove há seis meses todos os dias, você sabe perfeitamente o que está acontecendo com o planeta, Bela. Não temos previsão de um dia de Sol. Ah, bem lembrado: hora da vitamina D. Por favor, tome duas cápsulas antes do jantar”.
“Tá, tá. Vou tomar. E depois vou comer e dormir para dar conta desse EPR de amanhã. Mia, Mia, Mia... assim você me quebra, Mia”.
No dia seguinte, a mãe de Isabela chegou pontualmente às 19h. Mia avisou que ela estava entrando no prédio e abriu a porta do apartamento. Isabela estava na cozinha servindo duas taças de vinho quando Cristina entrou. Elas se beijaram protocolarmente e, enquanto iam para a sala, Isabela notou como a mãe havia envelhecido. O andar embaralhado e lento, as mãos trêmulas ao lado do corpo, a fala pausada e gaguejante. Quando exatamente esse envelhecimento tinha acontecido? Como ela não havia percebido? Há quanto tempo não se encontrava com a mãe? Meses? Anos? Queria perguntar a Mia, mas não podia.
"Que bom que Mia marcou esse jantar", disse a mãe sentando-se com dificuldade. "Aliás, boa noite, Mia".
"Boa noite, Cristina. Seja bem vinda".
"Você tá bem?", perguntou Isabela à mãe vendo os gestos trêmulos e limitados.
"Estou bem, Bela. Mas preciso te dar uma notícia. Não faça essa cara, minha filha. Vamos dar um gole nesse vinho? Um brinde aos EPRs. Que vinho bom. Pinot, né? Sul-africano? Imaginei. Delicioso. Então, Bela. Recebi o diagnóstico de que esse vírus que tá circulando por aí, esse novo, esqueci o nome, me contagiou e afetou minha musculatura. Não se preocupe que esse pelo menos não é contagioso pelo ar. Mas o prognóstico é de no máximo seis meses de vida, uma vida que vai me deixar numa cama e sem movimentos antes de terminar. Você me conhece, sabe que não quero esse fim. Não chore, minha filha. Espere eu contar tudo. Optei pela eutanásia agradecendo aos céus por ela ter sido legalizada em 2034. Vou partir daqui a um mês e estou em paz com isso. Espero que você possa ficar em paz também. Eu amo muito você e me orgulho da mulher que você se tornou. Gostaria, se fosse possível, de passar esse último mês em sua companhia. Conversar, ver filmes, saber de seus sonhos e desejos. Podemos fazer isso?".
Isabela escutou o que disse Cristina sem se mexer. Sentia as lágrimas caindo, mas não tinha controle sobre elas. Queria abraçar a mãe, mas também já não sabia mais abraçar outra pessoa. Como fazer? Ela iniciava o movimento? Esperava a mãe? O que Mia tinha a dizer sobre tudo isso? Mia tinha o passo a passo do abraço? Ela estava escutando tudo, por que não falava nada? Com dificuldade, Cristina abriu os braços e Mia então se jogou em seu colo. Não era preciso um protocolo para esse tipo de contato. Como uma criança, deitou a cabeça nas pernas da mãe, colocou as pernas sobre o sofá, se aninhou e chorou. Seria aquele o melhor lugar do mundo? O lugar mais seguro? O que faria sem ele? Nessa posição elas ficaram por muito tempo sem que ninguém dissesse nada; era apenas o pranto de Isabela e o carinho que Cristina fazia no cabelo da filha. Um abraço mudou tudo em Isabela. O mais básico contato não verbal com outro humano desbloqueou múltiplas dimensões de afeto e de sonhos. Isabela estava triste, mas em paz. Seria bom passar esse mês com mãe.
"Pronto, minha filha, pode parar de chorar. Vai ficar tudo bem, eu garanto. Vamos comer alguma coisa?".
"Mãe, eu não tô mais chorando", respondeu Isabela levantando o corpo e colocando os pés no chão. As duas gastaram algum tempo se olhando intrigadas até entender de onde vinha o choro.