
Caio Vilela - Neve, barro e praia: fotógrafo viaja o mundo para fotografar futebol de rua / Imagem: Caio Vilela
Tenho dito regularmente que mulheres que amam o futebol estão apaixonadas por alguém que nos detesta. Essa é a sensação muitas vezes. Quando ocorrem tragédias como a que tirou a vida de Gabriela Anelli, a vontade de desistir aumenta.
O futebol pode ser violento, racista, machista, misógino, LGBTfóbico, excludente, opressor, alienador.
Nós, mulheres, somos agredidas física e sexualmente nos estádios, somos silenciadas nas transmissões, colegas de trabalho jogam a gente publicamente aos leões com um sorriso no rosto, temos que escutar músicas cantadas nas arquibancadas que ridicularizam o feminino e lidar com gente que acredita que usar pronomes femininos diminui o outro.
Notamos o eloquente silêncio de muitos jornalistas e de jogadores em relação a acusados e condenados por estupro. Tudo isso nos diz que estamos no lugar errado.
Mas não são só as mulheres as vítimas desse jogo.
Existe uma classe de pessoas que vem sendo excluída lenta e regularmente do futebol: os geraldinos.
Aquela parte da população que não pode pagar para ver seu time jogar, não é sócio-torcedor, não compra camisa oficial, não virou cliente nem consumidor.
O futebol vem sendo elitizado desde a década de 90, uma elitização que agora se acelera.
Não por acaso, as torcidas organizadas, formadas por membros da classe trabalhadora, passaram a ser criminalizadas.
Nesse ponto seria preciso, como pede meu amigo Elias Jabbour, que passássemos do pensamento simples para o complexo.
"Que classe trabalhadora o quê? Os caras ganham dos clubes para ficar viajando para ver o time jogar!"
Esse acima seria o pensamento simples. Como complexificá-lo?
Primeiro, classe trabalhadora não classifica apenas os empregados.
Segundo, porque seria preciso entender que é uma minoria de torcedores que viaja para ver o time jogar. Depois, entender que não são sempre os mesmos. E por fim, fazer a pergunta: o que há de errado em um time ter acordos com parte da torcida para que ela siga em caravana em apoio àquela camisa?
A pergunta não é retórica. É uma pergunta legítima.
Não suportamos o pobre que, em tese, não trabalha. Mas o rico tá de boa.
Pobre é chamado de preguiçoso e vagabundo. Rico à toa é o cara que "chegou lá".
Um sistema econômico que não é capaz de oferecer emprego a todos, mas exige que todos trabalhem. "Ele é muito trabalhador" é uma forma de dizer que alguém é decente.
O trabalho como um chamamento. Tanto faz que nem todos possam trabalhar porque não há emprego disponível. É preciso tentar, de sol a sol. Esforce-se e você chegará lá.
Não é verdade, todos sabemos. As pessoas mais esforçadas que conheço são bastante pobres. Algumas das mais ricas, bastante preguiçosos.
A falta de emprego não é a falta de trabalho, percebam. Trabalho tem de sobra. Precisamos de estradas, praças, hospitais, creches, escolas. Tem gente querendo trabalhar. Tem máquina parada. Mas o sistema adorado por muitos é incapaz de unir as três pontas.
Mas fiz um desvio no que queria dizer. Voltemos à rota.
Me parece legítimo que os clubes tenham interesse em apoiar parte de sua torcida para ir vê-lo em campo fora de casa. Se isso for feito de forma transparente, não vejo problema algum.
Torcidas organizadas são atores políticos importantes no nosso futebol. Precisam ser escutadas e incluídas no debate sobre como acabar com a violência.
Há, evidentemente, vândalos e delinquentes no meio delas. Como há no condomínio em que você mora. Tomar o todo pela parte é perverso e injusto.
As TOs estavam na linha de frente durante a pandemia. As de São Paulo, unidas, foram às ruas avisar que o "fique em casa" não as atendia porque eles eram os entregadores e as enfermeiras. O que o governo faria a respeito?
As TOs foram desbloquear as estradas tomadas por fascistas que queriam dar um golpe de estado.
Os que dizem que Gabriela Anelli assumiu o risco de morrer por pertencer a uma torcida organizada estavam apoiando os fascistas nessa história. E aí? Como fica agora?
Futebol é o ópio do povo, dizem alguns adaptando a frase de Karl Marx ("a religião é o ópio do povo") e sugerindo que nada de bom vem desse lugar.
Outra vez seria preciso complexificar.
A frase de Marx é maior. Ele diz assim:
"A religião é o suspiro da criatura sufocada, o coração de um mundo sem coração, o sentido de um mundo sem sentido. A religião é o ópio do povo."
Troquemos "religião" por "futebol". E agora?
"Sim, o futebol é comercial, capitalista, frequentemente racista e nacionalista. Mas também é subversivo, criativo e solidário. O futebol pode fazer algo que os esquerdistas quase não conseguem mais fazer: ele pode dar esperança. Mesmo quando o pequeno Rot-Weiss Essen joga contra o super-poderoso FC Bayern München, os torcedores do Essen vão ao estádio — porque há dias em que milagres de futebol acontecem."
O trecho acima foi tirado de um texto de Jonas Wollenhaupt, traduzido por Gustavo Crivellari para a Jacobin.
Ele segue:
"Para aqueles de quem se tirou tudo na vida, que trabalham por pouco dinheiro e não sabem como trocar a máquina de lavar quebrada, há sempre o seu clube e a esperança de um dia voltar para o outro lado da vida. Para o sujeito humilhado, o futebol pode ser um pequeno pedaço de autoempoderamento em um mundo cheio de derrotas."
Eu concordo integralmente. Futebol é campo em disputa. Deixar ele ser tomado por fascistas e ultra-direitistas não nos salvará de nada. É preciso seguir nessa luta porque estamos lidando com um terreno fértil para transformações sociais e inclusão.
O jogo, que ao ser regulado por ingleses foi sequestrado pelas elites, seria um esporte tedioso se não tivesse, em seguida, sido capturado pela classe trabalhadora.
Os times de elite jogavam com chutões e correria.
Foi a classe trabalhadora, mal-nutrida e mais fraca, que trouxe o toque de bola e os esquemas táticos através dos quais foram capazes de impor humilhantes derrotas aos times bem vestidos, bem nutridos e fortes: ao evitar a correria, encontraram uma forma mais inteligente, solidária e bonita de jogar.
No Brasil, o drible nasceu nos guetos onde a capoeira foi proibida por lei. Sem poder dançar e jogar, os moradores dessas comunidades pegaram a bola e inventaram o drible, a mais bela das enganações.
Por tudo isso não desisto do futebol. Tem muita coisa em jogo quando dois times entram em campo. Muito mais coisas do que podemos supor. Coisas tangíveis e coisas misteriosas. Coisas pequenas e coisas imensas. Coisas da ordem dos afetos, dos amores e das paixões.
Seguimos.