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Por que a voz de uma mulher narrando futebol gera tanta fúria

UOL

22 Abril 2022

Renata Silveira em sua estreia no Grupo Globo / Imagem: Reprodução/SporTV

Eu me apaixonei pelo futebol escutando homens narrando jogos pelo rádio. Muito mais do que pela TV, foi nas ondas do meu radinho de pilha, que ia comigo a todos os lugares, inclusive ao estádio numa época que isso era permitido, que esse amor se aprofundou. Até hoje, se o jogo está difícil, eu desligo a TV e vou escutar pelo rádio. Minha superstição predileta. Costuma funcionar.

Em nenhuma fase do meu encantamento pelo jogo eu imaginei que uma voz feminina pudesse narrar. Simplesmente não me ocorreu essa possibilidade. Aceitei passivamente que o futebol que eu tanto amava teria para sempre a voz de um homem.

Enquanto eu me enfeitiçava por esse esporte, e sonhava com a chance de um dia jogar profissionalmente (sonho que minha mãe ceifou sem piedade), outras mulheres cresciam sonhando com um mundo no qual elas pudessem narrar uma partida. Sonho que a gente sonha junto e que idealiza um mundo mais inclusivo é investido da mesma força que acendeu as estrelas. Por isso, é uma questão de tempo para que ele se realize.

Hoje, temos dezenas de narradoras e no dia 20 de abril Renata Silveira fez história como a primeira mulher a narrar um jogo masculino numa emissora aberta de TV.

É absolutamente natural que, de primeira, estranhe-se uma voz diferente narrando um esporte que faça tanta parte de nossas vidas. A construção dessa paixão se deu sobre timbres masculinos. O estranhamento faz parte da reconstrução. O que não é natural é a fúria dos comentários que atacam as narradoras.

A narradora Luciana Mariano, da ESPN, já abriu 156 processos contra perfis de rede social que se acharam muito valentes a ponto de dizer coisas como: "quero que sua família morra num acidente de carro e só você sobreviva".

Que raiva é essa? Da onde ela vem?

Seria interessante que essas perguntas fossem feitas porque, ao buscar as respostas, acharemos muitas coisas pelo caminho.

Se um homem não gosta da voz de uma mulher, não gosta das coisas que ela diz e não gosta de suas opiniões, será que ele gosta mesmo de mulher?

A pergunta não é capciosa. Não quero sugerir que todo valentão é um gay enrustido (ainda que muitos sejam). Não é disso que se trata. O que seria importante abordarmos aqui é a cultura da violência contra a mulher e desse ódio a tudo o que seja associado ao feminino - que se chama misoginia.

A antropóloga Marilyn Frye define com a precisão de um chute de Renato Augusto como essa cultura funciona: "dizer que um homem é heterossexual implica somente dizer que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto. Tudo ou quase tudo o que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reserva para outros homens: As pessoas que eles admiram, respeitam, adoram, imitam, idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; as pessoas a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, reverência e amor eles desejam - esses são em sua maioria esmagadora, outros homens. Em suas relações com mulheres o que é visto como respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo. O que é visto como honra é a colocação da mulher em uma redoma. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura da heterossexualidade masculina é homoafetiva: ela cultiva o amor pelos homens".

Essa reflexão contém uma multiplicidade de pontos que poderiam ser analisados, mas, para encerrar, vou falar do paternalismo.

Na semana em que Renata Silveira faria história vi muitos de seus colegas dizendo publicamente coisas como: "Renata, vai lá e faz o que você sabe. Vai dar tudo certo".

Esse tipo de comentário vem de homens que querem se mostrar aliados e, a princípio, parecem apenas simpáticos e até elogiosos. Eu acredito que muitos homens estejam movidos por boas intenções, mas um comentário como esse é altamente paternalista. Ele diz: esse lugar é nosso por direito, nós sabemos fazer, mas você é boa e pode conseguir.

Outro dia escutei também alguém dizer a uma repórter em campo: mas você é muito sortuda por estar aí. Me bateu estranho aquilo. É que não tem nada de sorte. É, como diria Muricy, apenas trabalho. Trabalho, muito trabalho.

É também engolir muitos sapos, sorrir de lado quando sabe que o comentário do colega foi indigesto mas não há nada a fazer porque o colega é poderoso e estamos ao vivo. É fingir que não escutou a cantada barata do chefe. É reagir quando parece inevitável que assim o façamos mesmo sabendo que vamos pra geladeira ou seremos mais e mais preteridas. É tudo isso, menos sorte. Dizer que é sorte é, indiretamente, lembrar a gente que esse lugar não é nosso.

O paternalismo é esse comportamento paternal que infantiliza a mulher e suas conquistas. Ele se veste de elogios, de redomas, de pedestais para conferir a quem o fez a postura de pessoa maior, mais experiente, mais poderosa. Ele é uma das faces do machismo e da misoginia, e os caras mais bacanas são capazes de cometer paternalidades sem se dar conta do que estão fazendo.

A luta é longa, é suada e envolve ainda muita desconstrução. Preconceitos podem cair, comportamentos podem mudar. Aos que quiserem ser valentes para encarar essa transformação, a mulherada está mostrando caminhos: estamos falando, estamos berrando e estamos narrando. Você pode estranhar nossa voz a princípio, mas tudo nessa vida é construção. Você não nasceu amando futebol: você foi ensinado a amar. Você não nasceu odiando e infantilizando mulher: você foi ensinado a odiar e a infantilizar.

Escrevo essa coluna enquanto vejo o Barcelona Feminino jogar dentro de um estádio com quase 90 mil pagantes. Não tem volta, gente. Viemos para ficar e revolucionar. A possibilidade de nos construirmos como sujeitos melhores e maduros está dada todos os dias. Quem vem nessa?

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