
Especial Futebol de Várzea / Imagem: Diego Padgurschi/UOL
A palavra orçamento já não se separa mais do futebol. Não se separa durante a temporada e não se separa de forma ainda mais aprofundada fora de temporada, quando os times começam a entender quanto exatamente devem e o que vão fazer no ano seguinte em relação a entradas e saídas.
É óbvio que um clube precisa estar economicamente organizado, não se trata aqui de propor calotes ou a anarquia financeira. O que me perturba é ver as coisas do avesso.
O São Paulo, por exemplo.
O clube aprovou o orçamento para 2022 que, entre outras coisas, prevê a redução de 108 milhões na dívida. Até aí tudo até que bem, apesar desses números não fazerem o menor sentido conceitualmente falando porque esse tanto de dinheiro, francamente, nem existe, mas para falar disso teríamos que entrar nos absurdamentos do nosso sistema econômico e financeiro.
A dívida é de 700 milhões e um número como esse serve para fazer a gente entender que no capitalismo rico pode dever alegremente. Quem não pode dever é pobre. Lembram da grita contra o candidato que em 2018 propôs limpar nome de devedores do SPC? Os tais economistas liberais tiveram chiliques (estou mal comparando a dívida de um clube à de pessoas físicas, mas o argumento vale porque exemplos de ricos devedores e caloteiros e de ricaços que fazem empréstimos ao BNDES para comprar jatinhos não faltam).
Bem, mas o orçamento segue: previsão de entrada com venda de jogador (142 milhões) e previsão de gasto com compra de jogadores e formação de atleta (42 milhões). Aí a minha cabeça já começa a dar nó.
Entendo que a dívida é do tamanho do mundo, mas justamente por isso não deveria haver um plano pesado de investimento na base? Não seria esse um caminho honesto para a sair desse estado de coisas? Mesmo que seja um caminho mais lento, me pareceria mais saudável e justo. Mas aí cabe a pergunta: saudável e justo para os interesses de quem? Deixo com vocês as respostas.
Só que a parte que mais me frita os miolos é a seguinte: as previsões esportivas, que a linguagem econômica manda chamar de metas. As metas esportivas para 2022 são: chegar às finais do Paulista e da Sulamericana, às quartas da Copa do Brasil e pelo menos em sexto no Brasileirão.
Tá certo, essas posições, chamadas de metas, têm seus equivalentes em moedas. Estamos falando de grana e, como se trata do orçamento, faz todo o sentido. O que pra mim não faz sentido é essa ser a única lógica, a única dimensão para o debates de ideias.
No mundo como eu entendo, um time como o São Paulo abre o ano para ganhar tudo. Ah, quanta ingenuidade, dirão. Não é assim que as coisas funcionam. É preciso planejar, estabelecer metas, completarão. Tá certo, ok. Mas aí os caras saem listando colocações em campeonatos que nem começaram e a ingenuidade é a de quem pede mais paixão e menos razão?
É que nesse universo que só dá valor as coisas objetivas, mata-se primeiro os sonhos, os devaneios, os delírios e o futebol, como eu vejo, não se separa dessa trinca.
No mundo da razão e das coisas objetivas, não se fala, por exemplo, sobre estabelecer uma filosofia de jogo que vai fazer parte do estatuto e ser independente de chegadas e saídas de comissões técnicas. Uma filosofia que respeite a história do clube, sua identidade, seus predicados, seus atributos.
Uma filosofia que olhe para a base, para a formação de craques que não precisarão ser vendidos, que valorize a torcida.
Um planejamento para baratear ingressos, para que o torcedor de baixa renda possa lotar o estádio em todos os jogos, para que crianças, os torcedores de amanhã, frequentem como nunca antes.
Sobre isso não se fala, nem os clubes, nem o noticiário. Orçamento é coisa seríssima e não há tempo para devaneios e ingenuidades, muitos argumentarão.
Usei aqui o exemplo do São Paulo, mas vale para todos os times, é evidente.
Por tudo isso, para mim o futebol está sendo organizado pelo avesso. Não serve a muita gente esse tipo de lógica, mas serve a quem importa e a quem manda: bancos, magnatas, empresários.
Naturaliza-se a linguagem econômica para falar do (e pensar o) futebol. Pouca coisa considerada importante fica fora dessa ordem financeira. Tem quem goste, eu bem sei. Mas eu não gosto. O que gostaria mesmo era de ver mais várzea e menos UEFA nos nossos campos.