
Torcida do Corinthians Camisa 12 na volta do público ao estádio em Itaquera
Imagem: Ettore Chiereguini/AGIF
Eu queria nunca mais escrever sobre machismo e misoginia no futebol, mas infelizmente esse dia vai demorar a chegar. Agora mesmo, tem dois textos em destaque nesse portal que são, de uma só vez, importantes e repugnantes.
Importantes porque, cada vez mais, precisamos falar sobre essas estruturas de poder que destroem, todos os dias, as vidas de tantas mulheres. E repugnantes porque lê-los sem sentir náusea é esforço dolorido.
O primeiro texto está na página da minha amiga Marília Ruiz e conta com exclusividade que no grupo de mensagem de conselheiros corintianos o conselheiro conhecido como Mané da Carne mandou a conselheira Analu Tomé ir lavar um tanque de roupa.
Como se a colocação não fosse suficientemente ofensiva, machista, misógina e grosseira, a reação dos demais foi igualmente medíocre, e destaco aqui a do presidente corintiano que disse a Marília: "O Corinthians como instituição repudia qualquer atitude ofensiva e machista. Mas esse é um caso particular entre os dois conselheiros, aconteceu fora do clube. A conselheira Analu pode procurar a Comissão de Ética ou o Conselho Deliberativo para fazer a sua denúncia".
O que seria importante que o presidente corintiano entendesse é que machismo não é "caso particular". Não há "caso particular" envolvendo machismo, misoginia, racismo, LGBTfobia. Dizer absurdos como esse é ser conivente com o machismo e com a misoginia.
Esse tipo de colocação é covarde porque deixa a vítima isolada, porque manda um sonoro "vai reclamar em outro lugar" e porque não se coloca de forma veemente contra o conselheiro que disparou a frase machista. É um "ah, gente, essas coisas acontecem. Ela que lute". E reflete com precisão o que passamos quando ousamos gritar que estamos sendo assediadas ou abusadas.
O pacto solidário da masculinidade só é quebrado quando a violência, física ou verbal, atinge a filha, a namorada, a mãe ou a mulher de algum macho eventual. Nessa hora, tratando cada uma de nós como propriedade deles, saem furiosos em defesa das "suas" mulheres. E aqui vale perguntar o que faria o presidente corintiano se o tal do Mané tivesse falado assim com alguma das mulheres de sua vida.
O outro texto trata do assédio sexual em jogos do campeão brasileiro desse ano (ah, gente, acabou, né?): o Galo. Muitas histórias de torcedoras que foram agarradas à força, abusadas, assediadas.
Quando a gente decide ir ver um jogo no estádio a gente sabe dos riscos que corre e precisa amar demais um time para que, mesmo assim, façamos esse esforço. Não é seguro torcer, não é seguro ir ao banheiro, não é seguro ir comprar uma cerveja.
Existe uma única situação na qual estamos em um ambiente de segurança: se estivermos acompanhadas de um homem. Já pararam para pensar o que isso diz sobre vocês? Que vocês respeitam mesmo é um outro homem. É aos homens que fazem deferências, aos homens que demonstram consideração, aos homens que revelam admiração. Vocês não nos importunam quando estamos acompanhadas em respeito ao acompanhante e não à nossa integridade. "Essa mulher tem dono", é o que fica claro.
É preciso parar para pensar sobre essa cultura da masculinidade, sobre esses pactos tácitos entre vocês, sobre o que os pactos revelam a respeito dessa doença que é o machismo e a misoginia que a cada duas horas mata um corpo de mulher no Brasil. Afinal, a gente só se sente de verdade dono daquilo que se autoriza a destruir.
Não estamos em busca de proteção, estamos em busca de liberdade. Não queremos ser colocadas em pedestais, ser reconhecidas por algum traço estético que vocês julguem admirável. Isso não nos lisonjeia; isso nos apavora. Queremos emancipação das garras perversas do machismo e da misoginia; queremos ver o jogo do time que amamos em paz, queremos, quem sabe um dia, deixar de sentir medo de vocês.
É o que diz o ditado: o maior medo de um homem é que uma mulher ria dele; o maior medo de uma mulher é que um homem a mate. E, todos os dias, somos mortas por homens que conhecemos: maridos, namorados, ficantes ou alguém a quem ousamos recusar. Me parece um jogo muito perverso, não?
Todo mundo que ama um time sabe do enorme prazer que existe em ir ao estádio e vibrar, cantar, pular. Pois nós nunca fizemos isso livremente. Estamos sempre atentas, esperando a passada de mão, a cantada, o abraço fora de hora, um beijo forçado ou coisas ainda piores. O que vocês fariam se um marmanjo fizesse isso com sua filha? Ou com sua namorada? Ou com sua mãe?
É lamentável ter que apelar para a empatia de vocês usando as mulheres de suas vidas como propriedades, mas, infelizmente, talvez só assim vocês consigam alcançar algum tipo de entendimento e de solidariedade. Num mundo ideal seríamos respeitadas apenas por sermos sujeitos plenos, sem necessariamente sermos mulheres de algum homem. Mas esse mundo ainda está distante. Por agora, bastaria pensar como vocês reagiriam se fizessem com a mulher de vocês o que os "outros" homens fazem com a gente. Já seria um começo.
Se virem uma mulher ser abusada, se metam, chamem a polícia, soquem o marmanjo, gritem. Se virem comentários machistas em grupos de mensagem, posicionem-se veementemente. Isso é ser homem, isso é ser uma pessoa decente.
Quanto aos dirigentes desse esporte que a gente insiste em amar, talvez ajudasse pensar na gente enquanto consumidoras e sócias-torcedoras porque, talvez, só assim vocês consigam nos enxergar em algum tipo de integridade.
Em relação a narradores, comentaristas e repórteres, seria muito decente se, por exemplo, elogiassem Cuca, um homem condenado por envolvimento no estupro de uma menor, por suas qualidades como técnico, mas jamais como ser humano, como homem, como pessoa doce, gentil, educada ou — como já escutei em tempos muito recentes — um verdadeiro gentleman.
Se a gente desistir do jogo, quem perde são vocês. Somos quem mais compra, quem mais torce, quem mais assiste. E chegamos até aqui mesmo sendo, a cada jogo, abusadas por vocês. Chegamos aqui mesmo sabendo que vocês nos odeiam, desprezam e apequenam. Chegamos aqui porque amamos esse esporte e uma camisa de forma que vocês talvez jamais consigam entender. Mulher gosta sim de futebol; é o futebol que não gosta da gente.