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Carta aberta a Cuca

UOL

26 Abril 2023

Cuca,

Você talvez não se lembre mas já dividimos um mesmo carro saindo da antiga sede do SporTv, no Rio Comprido, Rio de Janeiro, até Botafogo.

Era 2006 e estávamos no Sportv para falar de Copa do Mundo se não me engano.

Você tinha a respeito daquela seleção brasileira ideias muito parecidas com as minhas.

Me lembro de, no carro, termos tido a chance de aprofundarmos nossas impressões.

Me lembro de sua gentileza na conversa e me lembro, mais do que qualquer coisa, do respeito com que você interagiu com meu conhecimento do jogo.

Quando falamos com homens sobre futebol sabemos identificar aqueles que fingem que estão nos ouvindo mas de fato não estão nem aí para o que temos a dizer.

Esse não foi o seu caso.

Você estava genuinamente interessado em meu ponto de vista.

Saí de lá nutrindo por você as melhores impressões.

Vi sua trajetória como vencedor e fiquei feliz por você.

E, quando o caso de Berna chegou até mim, minha primeira reação foi dizer: O Cuca? Não é possível!

Mas, nós mulheres, somos treinadas a perder a ingenuidade a respeito dos homens que nos causam boas impressões.

Uma grande parte acabará nos decepcionando ao longo do caminho.

Escrevo essa carta para tirar de mim algumas coisas que penso a respeito desse caso de Berna.

A primeira delas é: você não é um monstro.

Eu sei disso; estive com você.

Entendo que você possa ser bom pai, marido de respeito, avô dedicado.

Acredito na sua fé por Nossa Senhora e te admiro como profissional.

A segunda delas fala sobre você ter sido socializado como um menino nesse mundo.

Você aprendeu, como todos aprendem, que seu poder viria de sua masculinidade e que ser homem passa por pegar muitas mulheres.

Você aprendeu que ser homem é, eventualmente, pegar uma mulher junto com seus parceiros.

Se a mulher for uma adolescente não importa tanto porque você construiu seus desejos com base numa heterossexualidade normativa que tem dimensões pedófilas: a imagem da aluna de saia quadriculada e cadernos nas mãos é um clássico na construção dessa subjetividade masculina.

Não é só você: é uma ideia de masculinidade.

É nesses rituais que sua existência como homem é validada pelo grupo.

Imagino que muitos de vocês olhem para trás e se arrependam de coisas que fizeram com mulheres.

Coisas que jamais repetiriam. Coisas que fizeram apenas em busca da validação do grupo.

Não é preciso entrar em detalhes sobre o que aconteceu naquele quarto em Berna.

Mas eu diria que vai ser preciso reconhecer que ali houve um crime e que esse crime provavelmente acabou com a vida de uma pessoa.

Sabemos que a menina tentou se matar entre 1987 e 1989.

Sabemos que passou por transtornos psicológicos.

É suficiente para que o horror do que aconteceu ali seja devidamente endereçado.

Seria preciso que você soubesse que as mulheres passam por isso.

Todas nós.

As filhas, as mães, as primas, as tias, as cunhadas, as netas, as namoradas.

Essa é a realidade para as mulheres desse mundo.

Somos socializadas no mesmo ambiente que vocês: a puta de uma é a santa do outro.

Aprendemos as mesmas coisas a respeito do que é ser mulher e do que é ser homem.

Há séculos nossas ancestrais, em todos os cantos do planeta, lutam pelo direito de existir com dignidade.

Esse movimento vem de muito tempo mas recentemente ganhou força porque nossos berros não estão mais isolados.

Podemos nos comunicar de forma rápida e isso nos ajudou a saber que ser mulher em Berna não é diferente do que ser mulher em São Paulo ou em Luanda, ou em Durban ou em Oslo ou em Pequim.

Percebemos que não era uma questão pessoal, que não era o tamanho de nossas saias, nem o modo como nos comportamos, nem o fato de termos bebido. Percebemos que não éramos as responsáveis pelos estupros que sofríamos.

É bastante provável que suas filhas já tenham passado por algum tipo de importunação sexual.

Elas talvez tenham sido para algum homem o que aquela garota em Berna foi para vocês.

Sei que esse pensamento é perturbador e parte da perturbação vem de sua brutal realidade.

Talvez você consiga seguir sua vida sem endereçar essa questão com o devido respeito que estamos pedindo.

Talvez te baste dialogar com Nossa Senhora.

Mas eu queria fazer uma última tentativa aqui e dizer o que estamos pedindo a você.

Pedimos que você fale do crime com a gravidade que ele merece.

Não com detalhes, não olhando para trás, mas reconhecendo seu horror.

Dizer que não fez nada e por isso não deve desculpas a ninguém deixa a gente com mais raiva e abre traumas antigos em nossas carnes.

Se você dissesse que sim, o que aconteceu foi da ordem do inominável e você se arrepende todos os dias, estaria abrindo uma porta para a reconciliação.

Falar que vai buscar conversar com agentes sociais envolvidos na lei Maria da Penha. Conversar com eventuais vítimas que já tenham passado por tratamentos psicológicos e tentar uma maior compreensão do que a violência sexual faz com o resto da vida de uma mulher, exigir que o Corinthians - ou seu próximo clube - dê aulas sobre feminismo ao elenco e comissão técnica.

Esse seria um caminho para a reconciliação com aquelas que hoje você segue ferindo por não reconhecer a gravidade do crime que levou uma jovem a tentar o suicídio.

Mas você não foi por aí.

Você pegou o caminho contrário. Você viu o abismo e acelerou: avisou que vai contratar advogados para que sua honra não seja manchada.

Fazer isso, você precisa entender, é uma inversão da narrativa que só aprofunda o horror.

A honra manchada é a das vítimas de violência sexual.

Se colocar no papel da vítima vai apenas alargar nossa ferida coletiva.

Tomar essa atitude vai nos deixar ainda mais indignadas porque ela não é um caminho digno.

Entendo que se você conta a mesma história há 40 anos para as pessoas a sua volta é estranho mudar de repente e dizer: pessoal, eu não falei a completa verdade a vocês.

Parece uma tarefa imensa fazer isso, mas eu te sugeriria a arriscar porque esse é o único trajeto para a liberdade.

As pessoas que te amam seguirão amando e, de um jeito forte, te respeitando mais.

Você se livrará de um peso e começará a traçar um caminho que colaborará para que suas filhas e netas vivam num mundo menos violento.

Eu garanto que a receptividade a esse gesto vai surpreender você.

Você vai ter essa coragem?

No mais, o Corinthians seria mesmo o clube certo para que você mude de atitude em relação ao caso de Berna. Poderia ser uma pequena e bem vinda revolução para começarmos a destruir o machismo e a misoginia no ambiente do futebol.

Seria um jeito - talvez o único - de mudar uma história que começou de uma forma muito triste mas que ainda pode acabar com uma redenção.

Nosso pranto não é por vingança, é apenas para existirmos com dignidade.

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